quarta-feira, 24 de março de 2010

A riqueza causa mais violência doméstica em Angola do que a pobreza!

A riqueza causa mais violência doméstica em Angola do que a pobreza!


Participei num estudo sobre a violência doméstica encomendado pelo MINFAMIU (Ministério da Família e Promoção da Mulher) e seus parceiros das Nações Unidas (NU) … cabe ao MINFAMU publicar os resultados do estudo, todavia pela pertinência do assunto tomei a liberdade de trazer aqui no nosso espaço alguma reflexão sobre o mesmo. Faço isto motivado apenas pelo desejo de partilhar informação e alargar o debate. No seu discurso de fim de ano de 2006, o Presidente da Republica de Angola se referiu a um eventual aumento da violência doméstica. Esta afirmação do Chefe do Estado se constitui na primeira hipótese do nosso estudo. Partimos para o terreno com 3 hipóteses. Uma, formulada pelo Presidente da República, segundo a qual os níveis de violência doméstica em Angola estariam a aumentar; outra por populares segundo a qual a principal causa da violência doméstica é a pobreza material e outra defendida por muitas mulheres: a violência doméstica manifesta-se principalmente na forma de violência física contra a mulher. Sobre um eventual aumento da violência, com a excepção da província de Malange e Luanda onde todos entrevistados disseram que, sim, há um aumento dos casos de violência; – “ Sim, aqui em Malange há mesmo também um aumento, não sei porque é, mas que o número de casos aumentou, aumentou! Antigamente não era assim…havia mesmo violência, nossos pais batiam mesmo as suas mulheres, mas não era como agora. Agora, não sei se é a guerra ó quê, as pessoas mudaram” (Soba Cambiche); – nas restantes Províncias de todos informantes chaves[1] entrevistados sobre o assunto somente um (padre) afirmou ter havido um aumento da violência doméstica no período de 1978 à 2007[2]. Todos são unânimes em reconhecer que não se trata de haver um aumento de casos de violência, o que se passa é que há uma maior publicitação e socialização do fenómeno, através das médias, as vítimas têm agora mais coragem para denunciar os seus agressores do que outrora. Quanto as causas da violência doméstica; a pesquisa revelou que a principal causa da violência doméstica não é a pobreza material. É mais correcto afirmar que a violência doméstica é causada por motivos económicos do que dizer pela pobreza! Na verdade tem havido mais violência entre as famílias economicamente mais estáveis (funcionários públicos) do que as mais pobres (chefes de famílias desocupados). Portanto, em Angola, tanto a escassez como a abundância de dinheiro são causas de violência doméstica! – “É a mesma coisa, os homens quando começam a ganhar mais, arranjam já mais uma mulher. Até se formos a ver quando o homem não tem dinheiro é mais sossegado” (Palavras de uma mulher). Uma análise mais profunda da questão revelou que a má distribuição da renda familiar por parte do marido ou a fuga a responsabilidade de apoiar financeiramente os filhos (a paternidade), por parte dos pais separados são apontadas como as maiores fontes de violência entre os cônjuges ou pais separados. Muitos casos de violência doméstica, nas famílias economicamente mais estáveis, resultam da utilização egoísta, por parte do marido, esbanjamento, do seu salário e outros rendimentos a seu bel-prazer em detrimento do bem-estar da família. Nas famílias mais pobres (onde o marido é desocupado), o desejo de gerir as receitas da esposa tem sido a principal causa de violência. No primeiro caso, esse comportamento egoísta do marido, geralmente provoca ciúmes na mulher contra os amigos ou “amigas” e “catorzinhas” com os quais gasta o dinheiro. O mesmo acontece com os lares polígamos. O ciúme resulta em discussões constantes, estas por sua vez em ofensas morais e psicológicas que conduzem as agressões físicas entre o casal, e lamentavelmente, só quando há lesões ou as chamadas “ofensas corporais graves” é que o problema é considerado crime pelas autoridades. Uma lacuna da Lei que é urgente ser superada. Há uma tendência dos casais, nos quais, a esposa obtêm mais rendimento ou o homem é desocupado haver maior conflictos – o homem torna-se agressivo, porquanto sente-se diminuído na sua dignidade, pois, tradicionalmente o marido é tido como o “ganha pão” e gestor das receitas da família. A recusa do cumprimento das normas tradicionais sobre a herança, a devolução do alambamento, quando a mulher decidi separar-se do marido, a punição do adultério, etc. têm sido também uma fonte de conflictos, geralmente, envolvendo toda a família alargada. Este tipo de violência é resolvido de diferentes formas por diferentes povos. Por exemplo, na Província da Huíla, mais concretamente no Município da Chibia o povo Nhaneka-Humbe encara de forma mais pacífico o adultério do que os povos das restantes 4 Províncias, nomeadamente Ovimbundu (Benguela e Huambo), Kimbundu (Malange) bem como os habitantes de Luanda. O homem apanhado em flagrante com a mulher alheia paga ao ofendido um certo número de cabeças de gado bovino, em função do número de anos que o ofendido vive com a mulher. Esta prática tem sido aproveitada por certos homens para extorquir gado aos outros. Alguns homens sem se importar com a dignidade de suas esposas instruem-nas para se envolverem sexualmente com outros homens detentores de muito gado para serem indemnizados. A pesquisa revelou que, em alguns grupos étnicos da Província da Huíla, quando um homem morre, a mulher e os filhos são expropriados dos seus bens pelos parentes mais próximos. As acusações de pratica de feitiçaria são também fontes de violência entre os diferentes membros da família. Os idosos e as crianças são as principais vítimas dessas acusações e da violência daí resultante. Uma analise mais profunda do complexo esquema de relações causa e efeitos entre os diversos problemas que contribuem para a ocorrência do que chamamos aumento da violência domestica, aí onde ocorre, indica que a causa mais profunda do fenómeno é o colapso do sistema nacional de educação, sobretudo a educação moral e cívica e a formação profissional. A perda de valores morais, a preparação inadequada dos jovens para a vida, inclui a formação moral e profissional, e segundo, os entrevistados religiosos, o afastamento do ensino da religião faz com que, os homens e mulheres desta nação não constituam famílias! – “ Sim, nós em Angola, não temos famílias! Temos aglomerado de pessoas dentro de uma casa, mas não temos famílias” (palavras de um PGRP). –“ Se um homem não tiver uma educação adequada, que lhe confere autoridade moral; quando começar a ganhar mais e, por isso, passa a ser assediado pelas meninas. Porque há mais mulheres do que homens. Pois é, as estatísticas dizem que para cada homem existem 8 mulheres. Portanto há uma enorme pressão das mulheres sobre os homens (Risos) … Ora, se como disse, o homem não tiver uma boa preparação moral, cede a tentação… a mulher de casa toma conhecimento, ou através das próprias amantes do marido que lhe telefonam para lhe desmoralizar e dizem que ela já não serve para o fulano, ou por outro intermédio qualquer e está instalado o conflicto” (palavras de um Padre). Relativamente às principais vítimas da violência doméstica, os dados dos inquéritos confirmam a hipótese em 4 províncias, com a excepção da Província do Huambo, onde as crianças são as principais vitimas. Mas, o mesmo já não acontece com as formas de violência mais frequentes. As entrevistas com informantes chaves[3], revelaram que a violência moral e psíquica é mais frequente que a física, pois, esta é sempre precedida daquela. O que se passa é que as pessoas reconhecem mais facilmente a primeira do que a segunda. – ‘‘A violência moral e psíquica não é visível, porém, ela é muito mais grave e traumatizante do que a física. Depois há o aspecto cultural. Tradicionalmente a mulher, que é a principal vítima, foi preparada a aceitar a violência. Há mesmo um grande paradoxo: considera-se mais virtuosa a mulher que guarda segredo dos problemas do lar inclusive as agressões morais e física do que aquela que os denuncia” (idem). O número de casos de denúncia de violência no qual o homem é a vítima e a esposa ou a amante a agressora também tende a aumentar. Certamente, como foi dito acima, a pesquisa revelou que a violência manifesta-se primariamente na forma de ofensa moral e posteriormente física contra a mulher e as crianças, mas os centros de aconselhamento familiar, os comandos provinciais ou municipais da policia e as procuradorias tem registado casos em que o ofendido é o homem ou o pai. – “Os homens, talvez, por causa do orgulho têm mais dificuldades de denunciar esses casos”. A violência contra o homem, geralmente acontece quando o homem está embriagado. A mulher saturada com as humilhações do marido ou amante, aproveita o estado de fragilidade física deste devido a embriagues e, geralmente golpeia-o com um objecto muito duro, causando ferimentos graves ou mesmo a morte. As instituições mais procuradas pelas vítimas da violência doméstica variam em função da área de residência. Os moradores das zonas urbanas e peri-urbanas procuram o apoio da Policia enquanto que no meio rural procuram as autoridades tradicionais. Em algumas províncias as Igrejas são preferidas a polícia e as autoridades tradicionais. Segundo responsáveis da OMA e de alguns centros de aconselhamento, o facto de a polícia ser uma instituição predominantemente masculina tem sido preterida por algumas vítimas do sexo feminino a favor das Igrejas e dos centros de aconselhamento da OMA e do MINFAMU. – “ Como os polícias são homens, as vezes tem tendência de se solidarizar com os outros homens” (Secretaria Provincial da OMA). A opção da instituição a procurar para solução do conflicto doméstico também é influenciada por questões económicas. Nas zonas urbanas e peri-urbana as igrejas e os centros de aconselhamento são as instituições mais procuradas em detrimento dos tribunais, e nas zonas urbanas as autoridades tradicionais são a instituição mais solicitada. – “As pessoas preferem não levar os seus casos aos tribunais porque há encargos financeiros e além disso são muito morosos” (PGRP). Os tipos de violência doméstica mais frequentes identificados pelo estudo são os seguintes:

• Fuga a paternidade

• Despejo domiciliar

• Chantagem

• Ameaças

• Privação a liberdade

• Adultério

• Poligamia

• Ofensas morais

• Difamação

• Ofensas corporais sem ferimentos

• Ofensas corporais com ferimentos

• Injurias

• Homicídio

Dos doze tipos de violência doméstica apenas, as ofensas corporais com ferimentos, o homicídio, a difamação, a injúria estão tipificados como crime no código penal. Os restantes, sobretudo os actos de violência doméstica mais dramáticos, fuga a paternidade, despejo familiar, ameaças, adultério, poligamia, ofensas morais e psíquicas não estão tipificados como crime. Segundo, alguns informantes chaves[4] a constituição, o código penal e o código da família precisam de ser revistos, nomeadamente, em relação ao conceito de igualdade da mulher e do homem perante a lei, a tipificação da violência moral e psíquica como crime, e a inclusão de clausulas que permitam, a quem de direito, inibir o crime a sua origem ou no caso de consumado resolvê-lo, dentro do sistema da justiça, mas preferencialmente por via amigável sem encargos financeiros sobre a família. Luanda, 30 de Novembro de 2007. Serafim Quintino

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[1] Chefes de Comandos Provinciais e Municipais da Polícia, Directores Províncias de Investigação Criminal, Procuradores Provinciais e Municipais da Republica, Juízes de Tribunais Provinciais, Líderes religiosos, Responsáveis de Centros de Aconselhamentos das Direcções Províncias da Promoção da Mulher, da OMA, etc.

[2] Segundo o padre antes de 1978, os angolanos eram pobres por isso nao tinham excedentes para gastar com amantes ou constituir segundas famílias.

[3] Idem

[4] Ibidem